CRÍTICA TEXTUAL E HERMENÊUTICA LATINO-AMERICANA

Cássio Murilo Dias da Silva

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Brasil)

cassiomu@gmail.com

https://orcid.org/0000-0002-8264-7793

Resumo: Este artigo toma como ponto de partida o pressuposto de que muitas mudanças conscientes na transcrição de um texto têm uma função hermenêutica: por delas, os copistas deixaram registrado como determinado versículo deveria ou poderia ser lido e aplicado na vida prática de sua comunidade. Em outras palavras, tais alterações voluntárias são adaptações às necessidades teológicas, pastorais e eclesiais. Este artigo é mais propriamente uma provocação do que a sistematização de uma abordagem já amplamente realizada. Por meio da análise de alguns exemplos, quer-se demonstrar que o estudo da crítica textual oferece um frutuoso campo de possibilidades que a hermenêutica latino-americana pode explorar. A discussão de cada texto tomado como exemplo seguirá sempre os seguintes passos: a transcrição do aparato crítico, a opção do comitê editorial (isto é, a crítica textual clássica), a discussão feita por alguns comentadores e propostas de como as variantes textuais poderiam ser utilizadas na leitura latino-americana.

Palavras-chave: Crítica textual. Aparato crítico. Variantes. Hermenêutica.

Crítica textual y hermenéutica latinoamericana

Resumen: Este artículo toma como punto de partida el supuesto de que muchos cambios conscientes en la transcripción de un texto tienen una función hermenéutica: para ellos, los escribas registraron cómo un verso en particular debería o podría ser leído y aplicado en la vida práctica de su comunidad. En otras palabras, estos cambios voluntarios son adaptaciones a las necesidades teológicas, pastorales y eclesiales. Este artículo es más una provocación que una sistematización de un enfoque ya ampliamente difundido. A través del análisis de algunos ejemplos, queremos demostrar que el estudio de la crítica textual ofrece un campo de posibilidades fructífero que la hermenéutica latinoamericana puede explorar. La discusión de cada texto tomado como ejemplo seguirá siempre los siguientes pasos: transcripción del aparato crítico, opción del comité editorial (es decir, crítica textual clásica), discusión de algunos comentaristas y propuestas sobre cómo se podrían utilizar las variantes textuales en lectura latinoamericana.

Palabras clave: Crítica textual. Aparato crítico. Variantes. Hermenéutica.

Textual Criticism and Latin American Hermeneutics

Abstract: This article takes as its starting point the assumption that many conscious changes in the transcription of a text have a hermeneutical function: for them, the scribes recorded how a particular verse should or could be read and applied in the practical life of their community. In other words, such voluntary changes are adaptations to theological, pastoral and ecclesial needs. This article is more a provocation than a systematization of an approach already widely held. Through the analysis of some examples, we want to demonstrate that the study of textual criticism offers a fruitful field of possibilities that Latin American hermeneutics can explore. The discussion of each text taken as an example will always follow the following steps: transcription of the critical apparatus, the option of the editorial committee (that is, classic textual criticism), discussion by some commentators and proposals on how textual variants could be used in Latin American reading.

Keywords: Textual criticism. Critical apparatus. Variants. Hermeneutics.

Introdução

A leitura latino-americana da Bíblia é marcada principalmente (mas não exclusivamente) pela busca da compreensão do universo social e religioso retratado no texto, a fim de estabelecer os paralelos com o universo social e religioso do leitor de hoje, como primeiro passo para a apropriação e atualização do texto bíblico. Neste desejo de encontrar a analogia entre as situações e a identidade fundamental de sentido entre o contexto bíblico e o nosso contexto, a leitura latino-americana muitas vezes não considerou relevante discutir a composição do texto, os gêneros literários, o uso de material tradicional e o processo de redação do texto.

Nas últimas duas ou três décadas, porém, novas gerações de exegetas e teólogos bíblicos da América Latina, com o mestrado e/ou o doutorado na Europa e na América do Norte, capacitaram-se grandemente no uso do método histórico-crítico, o que exige sempre mais a definitiva superação da desconfiança em relação a ele. De modo bastante amplo, o questionamento que se impõe pode ser assim formulado: Como e em que medida as conquistas e os questionamentos do método histórico-crítico podem iluminar, aprofundar, corrigir e oferecer novos horizontes para a hermenêutica latino-americana? De modo breve e específico sobre o que proponho para este estudo – a crítica textual – formulo a questão da seguinte forma: Como utilizar a enormidade de informações e de discussões acerca dos manuscritos bíblicos e das lições variantes de um mesmo versículo para a leitura encarnada da Bíblia em nosso continente?

Este artigo reúne e sistematiza duas apresentações em dois distintos encontros de exegetas e teólogos bíblicos1. Tal gênese explica por que o presente texto, deliberadamente evita explicar o que é a crítica textual, bem como descrever detalhadamente os pressupostos, as nuances e a diversidade da hermenêutica latino-americana. Cada uma dessas omissões propositais exigiria um artigo à parte. Por outro lado, esta minha exposição tem ao menos quatro limitações. Em primeiro lugar, trata-se de uma parcela (talvez pequena) daquela interrogação mais larga. Segundo, é um estudo limitado porque é mais uma provocação do que a apresentação de um elenco aprofundado de respostas2. Terceiro, tratarei de apenas alguns exemplos pinçados, que servirão de experimento para verificar se a pergunta é cabível, se pode ser respondida afirmativamente e a quais e quantos casos ela se aplica. Mas creio que a principal limitação seja a quarta: é um exercício de biblioteca, feito por um estudioso, e não pelo povo; é um exercício acadêmico, que encontra respostas muito diferentes daquelas que as comunidades eclesiais encontrariam caso, em um círculo bíblico ou em uma comunidade eclesial de base, fossem discutidas as variantes textuais.

Nesta apresentação, tomarei como casos de estudo nove versículos com problemas textuais, conforme os aparatos críticos de três edições críticas: Novum Testamentum Graece, The Greek New Testament3 e Novum Testamentum Graecum Editio Critica Maior.

1. Pressuposição assumida

Repito, com outras palavras, a pergunta que aqui proponho e tento começar a responder: Como utilizar as ferramentas da crítica textual na leitura latino-americana da Bíblia?

Quero deixar claro que sou apaixonado pela crítica textual e que me deleito ao fazer a exegese de um texto repleto de problemas deste tipo. No entanto, não posso deixar de expressar uma inquietação pessoal e que, penso, não seja só minha. Sem me preocupar com a polidez da linguagem acadêmica, eu a formulo assim: Esforcei-me tanto para compreender os critérios da crítica textual – critérios externos e critérios internos –, fiz tantos exercícios para aprender a aplicá-los com relativa segurança (ainda que seja somente para concordar com a decisão dos responsáveis pelas edições críticas), consumi tantas horas para dominar o aparato crítico (siglas, números, séculos, famílias de manuscritos etc.)... Tudo isso, para, no final, optar por uma única lição, às vezes com um alto grau de dúvida, e descartar todas as demais, simplesmente porque nenhuma delas é a lectio brevior, nem a lectio dificilior, nem é possível considerá-la a origem das demais. Na obcecação de identificar a “redação original” de um versículo, muitas vezes nos esquecemos que, para a comunidade que utilizava aquele manuscrito, aquele versículo, com aquela lição “corrompida e secundária”, era a Palavra de Deus: aquela comunidade lia e respeitava aquele manuscrito como tal, e se deixava iluminar pelas palavras contidas nele.

Não é o caso de discutirmos aqui o que é o “texto inspirado”, se este conceito se refere a algum(s) manuscrito(s) concretamente ou se é um conceito bem mais amplo. Quero focar na seguinte pressuposição: muitas mudanças conscientes são já interpretações que os copistas embutiram nos manuscritos para ajudar os leitores a apropriar-se dos textos e aplicá-los às realidades concretas e específicas de suas comunidades e de suas vidas pessoais.

Como se vê, não me refiro aos inúmeros casos de mudanças involuntárias, que ocorreram por erro de leitura, erro de ouvido, papiros ilegíveis etc. Reconheço que, em se tratando das mudanças voluntárias, a maioria delas são minúsculas, talvez até irrelevantes, surgidas apenas como correções estilísticas, melhoras na gramática, ou mesmo adequações do que está escrito aos modos de falar da região em que a comunidade do copista está situada. Mas, quero recordar que, mesmo nestes casos, uma mudança consciente pode dar ao texto a brecha para uma interpretação não premeditada pelo copista. Guardadas e respeitadas as devidas proporções, diferenças e limitações, considero a hermenêutica latino-americana continuadora daquela mesma tradição interpretativa, que soube apropriar-se de textos de fácil interpretação, digerir os de sentido ambíguo ou duvidoso e, em ambos os casos, torná-los mais vivos e próximos da vida diária dos membros das igrejas locais.

2. Exemplos tirados de NA/UBS

Neste primeiro bloco, os exemplos foram pinçados das duas edições de A Textual Commentary on the Greek New Testament4, no qual Bruce M. Metzger apresenta uma seleção das discussões e conclusões do comitê editorial da edição crítica The Greek New Testament. Todas as lições variantes e seus manuscritos citados aqui encontram-se em NA27, NA28, UBS4 e UBS55. Os textos a serem estudados são: Mc 1,41; 4,40; 9,23; 10,24 e Rm 8,24.

2.1. Mc 1,41

Grego:

kaì

splanjnistheìs

ekteínas tēn jeîra autoû hpsato kaì légei autōi:
thel
ō, katharisthēti

orgistheìs

Tradução:

e

movido de compaixão

estendeu a própria mão e disse-lhe: “Quero!
Sê purificado!

irado

Variantes e manuscritos6:

splanjnistheìs

: א(IV).A(V).B(IV).C(V).L(VIII).W(V) e muitos outros

orgistheìs

: D(V). ita,d,ff2,r1

A opção do comitê editorial (crítica textual clássica):

Difícil decidir entre uma e outra lição. A crítica externa (manuscritos mais antigos, em maior número e de melhor qualidade) suporta splanjnistheís, “movido de compaixão”. A crítica interna, porém, prefere orgistheís, “irado” (lição mais difícil; além disso, a mudança para splanjnistheís pode ser explicada, mas o contrário, não). Ao longo dos anos, o grau de convicção do comitê editorial de NA e de UBS foi crescendo. Na NA26 (= UBS3), o comitê atribuiu uma letra {D}, isto é, havia um altíssimo grau de incerteza referente a splanjnistheís. Para a edição da NA27 (= UBS4), o grau de incerteza diminuiu e o comitê atribuiu uma letra {B}, avaliação mantida na NA28 (= UBS5).

Os comentadores:

Tanto um verbo como outro exigem que se determine o objeto: Jesus teve compaixão de quem? Jesus ficou irado com quem? Obviamente, Je­sus sentiu compaixão do leproso que veio pedir a cura. Mas o mesmo objeto não pode ser aplicado ao verbo orgistheís. Em geral, os comentadores preferem splanjnistheís. Os que admitem orgistheís como a lição original argumentam que Jesus em outras ocasiões teve acessos de ira (3,5; 10,14) e, aqui, tentam explicá-lo da seguinte forma: Jesus se irritou com a doença e a morte, consequências do pecado. Estamos, portanto, novamente na esfera do demoníaco (cf. Mc 1,21-28) e, por isso, a cura deste leproso tem elementos de exorcismos (o verbo ekbállō, “lançar, jogar”, do v. 43 é encontrado em relatos de exorcismo: 1,34.39; 3,15.22 etc.).

Para a leitura latino-americana:

Sem dúvida, splanjnistheís é muito menos problemático do que orgistheís. Embora a compaixão, a solidariedade e a misericórdia (todos sentimentos que podem traduzir o verbo splanjnízō) sejam atitudes muito enfatizadas em nossa leitura, o verbo orgízō, “irritar-se, sentir ira”, é igualmente interessante e conseguimos dar a ele um sentido que os comentadores não conseguem: Jesus fica irado, não contra o leproso (obviamente!) nem contra o pecado, a doença e a morte, e sim contra a atitude de desprezo e discriminação segundo a qual o leproso, já flagelado por uma doença grave e sem cura, tem seu sofrimento ainda mais aumentado pela discriminação e pelo preconceito7. Segundo a mentalidade da época, a lepra é um castigo por algum pecado e, para não contaminar a comunidade (tanto pela doença, como pelo pecado), o leproso é afastado da convivência familiar e comunitária. Esta ira de Jesus deve inspirar os cristãos a não praticar discriminação e indiferença, e sim a exercitar atitudes de acolhimento e cuidado que restituam a dignidade a quem sofre.

2.2. Mc 4,40

Grego:

kaì eîpen autoîs: tí deiloí este

? oúpō

éjete pístin?

hoútōs? pôs ouk

Tradução:

e disse-lhes: “Por que sois medrosos

? Ainda não

tendes fé?

desse jeito? Como não

Variantes e manuscritos:

; oúpō

: א(IV).B(IV).D(V).L(IX).Δ(IX).Θ(IX).565.700.892*.lat.co

hoútōs; pôs ouk

: A(V).C(V).K(IX).33.1424.l 221.syh.(f.syp)

e outras variações com inversões na ordem das palavras, e algumas com acréscimo de oligopístoi

A opção do comitê editorial (crítica textual clássica):

Graças à boa atestação nos principais manuscritos, o comitê optou pela forma mais breve, à qual atribuiu um {A}. Para o comitê, a lição mais longa, não obstante seja atestada em manuscritos igualmente bons e confiáveis, parece ter o objetivo de amenizar a repreensão de Jesus aos discípulos.

Os comentadores:

No evangelho de Marcos, esta é a primeira vez que Jesus repreende seus discípulos por sua falta de fé. Não obstante tenham recebido uma instrução mais profunda sobre o Reino de Deus (cf. 4,11.34); os discípulos permanecem cegos e sem entendimento. A fé que Jesus não encontra em seus discípulos é a confiança no poder salvador de Deus, que agora se faz presente e atuante em sua pessoa. A pergunta com oúpō, “ainda não”, expressa decepção: os discípulos são lentos demais para crer, mesmo após terem visto o poder de Jesus sobre a enfermidade e o demônio. A falta de fé torna os discípulos medrosos, covardes, incapazes de enfrentar as crises e o medo. Quanto à lição com hoútōs, “assim, desse jeito”, ela deve ser considerada o resultado de uma leitura equivocada de oúpō, e as variações provam que não foi fácil acomodar aquela palavra no conjunto da pergunta.

Para a leitura latino-americana:

Em nosso continente, os discípulos são continuamente chamados a assumir o compromisso a favor do Reino e contra tudo o que ameaça e destrói a vida. A fé que Jesus espera dos discípulos não é a confiança para receber milagres, e sim a confiança para arriscar-se quando a opção pelo Reino é perigosa; não é a confiança para pedir, e sim confiança para se entregar. Lida nesta perspectiva, a formulação mais longa não é mais amena, e sim mais enérgica: Jesus repreende os discípulos pela falta de audácia e de coragem para enfrentar os perigos decorrentes da adesão ao projeto de uma sociedade mais justa e fraterna. A repreensão de Jesus não tem a ver com a lentidão (“ainda não”, conotação temporal), e sim com o tipo de fé (“deste jeito”, conotação de qualidade: um tipo de fé baseada no medo, na conveniência, na busca de seguranças).

2.3. Mc 9,23

Grego:

ho dè Iēsoûs eîpen autō:

tò ei dýnēi,

pánta dynatà tō pisteúonti.

tò ei dýnasai pisteûsai

ei dýnasai pisteûsai

ei dýnēi pisteûsai

Tradução:

Jesus então lhe disse:

“Se podes(?)

Tudo é possível a quem crê”.

“Se podes crer.

“Se podes crer.

“Se podes crer.

Variantes e manuscritos:

tò ei dýnēi,

: א*(IV).B(IV).N(VI).Δ(IX).Σ(VI).f 1.205.892.itk.syrpal.et.geo

tò ei dýnasai pisteûsai

: A(V).C3(V).Ψ(VIII/IX).Byz [E F G H ](IX)..33.157.597.Lect.slav

ei dýnasai pisteûsai

: f 13.180.700c.1006.1010

ei dýnēi pisteûsai

: D(V).Θ(IX).it.vg.syp.h.pal.Ambrosiaster.Agostinho

A opção do comitê editorial (crítica textual clássica):

Jesus repete algumas palavras do pai do rapaz epiléptico, com o acréscimo de um (artigo neutro): tò ei dýnēi, na tentativa de dar sentido a uma frase pouco clara, copistas acrescentaram pisteûsai, “crer”. Mas este acréscimo provocou uma mudança no sujeito do verbo: Jesus não mais faz uma pergunta retórica na segunda pessoa, mas referindo-se a si mesmo “se tu podes?” (= se eu posso?), e sim faz uma afirmação desafiadora: “se tu podes/puderes crer”, dirigida ao pai do rapaz doente. Esta intervenção dos escribas torna o ainda mais estranho. O comitê assumiu que as formulações mais longas foram tentativas dos copitas para dar alguma clareza às palavras de Jesus e, por isso, optou pela forma mais breve e mais difícil: tò ei dýnēi, e avaliou esta formulação breve com um {B}: alto grau de certeza de que o texto é este.

Os comentadores:

Como no grego clássico, o artigo é aqui usado antes da citação de frases ou fragmentos de frases repetidas/citadas de outras pessoas. A redação compacta do v. 23 faz parecer que Jesus repete ei dýnēi, “se tu podes”, de modo irônico, referindo-se a si mesmo. Neste caso, a frase seguinte, “Tudo é possível para quem crê”, teria o significado de “É claro que posso, pois eu tenho fé”. Mas a réplica do pai do rapaz atesta que Jesus não fala de si mesmo. É necessário ler o conjunto. Na frase condicional do v. 22, “Mas, se tu podes alguma coisa, ajuda-nos”, o pai do rapaz expressa sua dúvida acerca da capacidade de Jesus para realizar o milagre. No v. 23, Jesus repete literalmente algumas palavras e reverte a questão: “O problema não é se eu consigo ajudar teu filho, e sim se tu crês”. Em outras palavras, a realização do milagre não depende da capacidade de Jesus, e sim da fé de quem pede. Embora a lição mais breve seja a redação original, os comentadores fazem um raciocínio relativamente longo e tortuoso para interpretar o versículo exatamente como sugerido pelas lições mais longas, com o acréscimo de pisteûsai, “crer”, independente do inicial e da variação dýnēi/dýnasai, “podes”.

Para a leitura latino-americana:

O acréscimo de pisteûsai torna explícito o deslocamento que os comentadores consideram implícito na frase compacta: do poder de Jesus (para fazer o milagre) para o poder da fé do pai do rapaz. E embora tal acréscimo torne o ainda mais estranho (cf. manuscritos em que foi omitido), a inserção de pisteûsai cria um balanço nas duas frases de Jesus e permite imaginar um acento na segunda pessoa: “Se tu podes crer, pois tudo é possível a quem crê!”. Talvez os copistas tenham acrescentado pisteûsai apenas para solucionar a dificuldade na interpretação da primeira frase de Jesus; com isso, porém, vincularam explicitamente a cura do rapaz à adesão e ao compromisso do pai. Esta mudança é particularmente interessante para a leitura latino-americana. O epiléptico era considerado um endemoninhado e, portanto, era obrigado a viver à margem da comunidade; a cura da epilepsia, não o resgatava apenas fisicamente, mas também socialmente. Em nosso continente, a fé, como adesão e compromisso, dos cristãos pode operar o mesmo milagre: o resgate da dignidade humana. Tal interpretação se faz ainda mais interessante quando se leva em conta que os discípulos de Jesus já haviam tentado curar o rapaz sem sucesso (vv. 18), fracasso que Jesus explica como consequência da falta de oração (v. 28). Cumpre notar que, muitos manuscritos acrescentam o jejum.

2.4. Mc 10,24

Grego:

tékna, pōs dýskolón estin

toùs pepoithótas
epì jr
masin

eis tn basileían toû theoû eiseltheîn.

ploûsion

hoi tà jrmata éjontes

Tradução:

Filhos, como é difícil

para os que confiram
nas posses

entrar no Reino de Deus.

para um rico

para os que têm posses

Variantes e manuscritos:

: א(IV).B(IV).Ψ(VIII/IX).Δ(IX).itk

toùs pepoithótas epì (toîs) jrmasin

: A(V).C(V).D(V).Θ(IX).f 1.f 13.0233.157 [...] Byz vg

ploûsion

: W(V)[ploúsion após eiseltheîn].itc

hoi tà jrmata éjontes

: 1241

A opção do comitê editorial (crítica textual clássica):

As inserções tiradas de outros versículos adjacentes atenuam o rigor da afirmação categórica de Jesus: ploûsion, “homem rico”, antecipa o v. 25; hoi tà jrmata éjontes, “os que têm bens”, repete parte do v. 23. O comitê optou pela lição mais breve dos códices mais antigos, à qual atribuiu um {B}.

Os comentadores:

Os comentadores fazem referência às diferentes versões das palavras de Jesus, mas comentam prioritariamente o conjunto das afirmações de Jesus acerca da dificuldade de os ricos entrarem no Reino de Deus (vv. 23-25). São unânimes em afirmar que Jesus provoca espanto entre os discípulos, porque contradiz a crença popular e assumida pelo judaísmo da época, segundo a qual as riquezas são uma bênção divina, em retribuição pelas boas obras e pelo esforço. A tríplice ocorrência da afirmação de Jesus, em três formulações diferentes (independente das palavras no v. 24), tem a finalidade de provocar a pergunta do v. 26, que, na verdade, não é o questionamento unicamente dos discípulos de Jesus, mas de todos os cristãos de todas as comunidades e épocas.

Para a leitura latino-americana:

O v. 24 é exclusivo de Marcos. Mateus e Lucas podem tê-lo omitido exatamente por sua dureza. Sem dúvida, as diferentes inserções atenuam a afirmação categórica de Jesus. Não obstante, a lição toùs pepoithótas epì (toîs) jrmasin deve ser analisada com mais atenção. Além de não replicar nenhum dos versículos adjacentes, a frase “os que confiam nas suas posses” permite a elaboração de um raciocínio progressivo: os que têm posses (v. 23), os que confiam nas suas posses (v. 24) e os ricos (v. 25). Uma vez que “ter posses/bens” equivale a ser “rico”, a inserção de “confiar nas posses/bens (riquezas)” permite questionar se é possível alguém eximir-se, afirmando: “Tenho bens, sou rico, mas não confio nos bens, na riqueza”. Inversamente, inclui no texto uma crítica a quem, mesmo não sendo rico, confia nos poucos bens que tem ou que deseja ter. É exatamente esta nova perspectiva que mais interessa à nossa leitura: aquela forma de argumentar e escusar-se, tão presente em nossas comunidades, pode ter sido comum também nas comunidades antigas e motivado o acréscimo desta frase, como advertência contra um modo enganoso de avaliar as próprias atitudes.

2.5. Rm 8,24

Grego:

elpìs dè blepoménē ouk éstin elpís; ho gàr blépei tís

elpízei?

hypoménei?

Tradução:

Ora a esperança que se vê não é esperança; pois, como

esperar

o que se vê?

aguardar com firmeza

Variantes e manuscritos:

elpízei

: 𝔓46(200).א2(IV).B(IV).C(V).D(VI) e muitos outros

hypoménei

: א*(IV).A(V).1739v.r..syrp.copsa, bo [Or(254).Ephr(373)]8

A opção do comitê editorial (crítica textual clássica):

A grande maioria dos manuscritos atesta a lição elpízei, “espera”. Exceto Orígenes e Efrém, todos os padres apostólicos que citam este versículo, citam-no com este mesmo verbo. Esta, portanto, foi a escolha do comitê – que atribuiu um {B} –, não obstante hypoménei, “aguarda com firmeza” pudesse ser a lição mais difícil. O verbo hypoménō, “aguardar
com firmeza, seguido de acusativo tem o significado de “esperar algo” e tal uso é bastante comum na LXX, mas jamais encontrado no NT, exceto nesta lição variante. A presença de
hypomon, “esperança”, no versículo seguinte pode ter induzido um antigo copista a substituir hypoménei por elpízei.

Os comentadores:

A relação entre esperança e perseverança já havia sido explicada por Paulo em Rm 5,3-4: “a tribulação produz a perseverança, a perseverança uma virtude comprovada, a virtude comprovada a esperança”. Agora, em 8,24-25, a esperança faz surgir a perseverança, como atitude fundamental nos momentos de tribulação que antecedem a glória futura.

Para a leitura latino-americana:

A substituição de um verbo por outro pode não ter sido involuntária. Mais do que “induzir” à uma substituição descuidada de um verbo por outro, a presença de hypomon no versículo seguinte pode ter oferecido ao copista uma ocasião para realçar o aspecto de perseverança nas tribulações e, deste modo, responder a uma situação de crise enfrentada por sua comunidade. Como sinônimo de elpízō, “esperar”, o verbo hypomonéō, “aguardar com firmeza”, dá ênfase à atitude de permanecer firme em meio à tribulação. Em português e espanhol estes verbos não funcionam tão bem como no grego e, por isso, exige alguma adequação: esperar com firmeza, aguardar com perseverança etc.

3. Exemplos tirados da ECM e confrontados com NA28/UBS5

Os exemplos a seguir foram pinçados diretamente dos dois volumes da Novum Testamentum Graecum Editio Critica Maior (a partir de agora, ECM). Exceto o último texto analisado (1 Jo 3,7), os casos são também contemplados pelas edições da NA (e da UBS) e servirão para um confronto dos aparatos críticos. É, portanto, conveniente iniciar este segundo bloco com o esboço das novas notações da ECM. Estudarei os seguintes textos: At 6,8; 20,24; 1 Pe 1,22 e 1 Jo 3,7.

3.1. Notações

Quem está habituado a usar os aparatos críticos da NA e da UBS sentirá um forte impacto, graças à nova diagramação das páginas, ao novo modo de apresentar o texto e as variantes, e às novas abreviações para indicar os manuscritos9. No texto estabelecido, cada palavra recebe um número par e, por isso, a notação de uma variante é sempre feita da seguinte forma: 1 Jo 3,7/16. Essa nova maneira de citar significa: Primeira Carta de João, capítulo 3, versículo 7, palavra 16. Caso algum manuscrito inclua uma palavra entre a que no texto é indicada com o número 16 e a indicada com o número 18, esta palavra da lição variante recebe o número 17.

O aparato crítico é composto de duas partes. Na primeira, logo abaixo do texto estabelecido, encontra-se o elenco das variantes. Nele, cada uma delas é identificada por uma letra, começando por b, uma vez que a corresponde ao texto estabelecido. Na segunda parte do aparato crítico, na parte baixa da página, para cada lição (a, b, c etc.) o elenco completo dos manuscritos que a atestam. Acrescentam-se ainda casos não contemplados, indefinições, testemunhos textuais sem um claro enquadramento e outras informações complementares10.

Feitas estas observações prévias, podemos passar aos exemplos.

3.2. At 6,8/8-12

Grego:

Stéfanos dè plrēs

járitos kaì dymámeōs

epoíei térata kaì sēmeîa megála en tōi laōi.

písteōs

járitos kaì písteōs

písteōs kaì járitos pneúmatos

Tradução:

Estêvão, porém, cheio

de graça e de poder

fazia grandes prodígios e sinais entre o povo.

de fé

de graça e de fé

de fé e da graça do Espírito

Variantes e manuscritos, conforme NA27 e NA28:

járitos kaì dymámeōs

: 𝔓8.45vid.74.(IV. III.VII).א(IV).A(V).B(IV).D(V).0175.33.
323.614.lat syp co

písteōs

: 1241.1505.𝔐.syh.GrNy

járitos kaì písteōs

: E(VI)

písteōs kaì járitos pneúmatos

: Ψ(VIII/IX)

Além de apresentar a lista completa dos manuscritos com essas quatro lições variantes, a ECM acrescenta ainda outras, bem como a lista dos manuscritos que não podem ser ligados a nenhuma delas. Como resultado, o elenco dos manuscritos é enorme. Enumero apenas as variantes:

8-12

a

járitos kaì dymámeōs

de graça e de poder

b

járitos kaì dymámeōs ōn

de graça e de poder sendo

c

járitos ōn kaì dymámeōs

de graça sendo e de poder

d

písteōs kaì dymámeōs

de fé e de poder

e

pneúmatos kaì dymámeōs

do Espírito e de poder

f

járitos kaì písteōs kaì dynámeōs

de graça e de fé e de poder

g

písteōs járitos pneúmatos kaì dynámeōs

de fé de graça do Espírito e de poder

h

písteōs kaì pneúmatos hagíou kaì dynámeōs

de fé e do Espírito Santo e de poder

i

písteōs kaì dynámeōs pneúmatos hagíou

de fé e de poder do Espírito Santo

A opção do comitê editorial (crítica textual clássica):

O texto mais antigo descreve Estêvão como um homem “cheio de graça (járitos)”. Em manuscritos posteriores, graças a uma assimilação do v. 5, ele é um homem “cheio de fé (písteōs)”. As demais lições são conflações e acréscimos.

Os comentadores:

No v. 5, Estevão foi descrito como um “homem cheio de fé e do Espírito Santo”; agora, ele é também “cheio de graça e de poder”. Pela imposição das mãos dos apóstolos, Estêvão recebe todas as qualidades necessárias para cumprir seu ministério e os milagres são os sinais visíveis daquelas qualidades. Nota-se uma linha sucessória no ministério profético: Jesus – os Doze – os Sete (dos quais, Estêvão é o primeiro exemplo; Filipe virá a seguir, em 8,5-40).

Para a leitura latino-americana:

Estêvão, escolhido para “servir as mesas” (At 6,1-6), não se restringe a esta função, mas vai além: ele se engaja também no ministério profético, sem temer a oposição e o martírio. Nisso, há uma clara afirmação de que a Igreja só cresce quando os cristãos não se restringem ao culto, mas têm a audácia de assumir o ministério profético. As lições variantes fazem parte de um esforço de enaltecer o primeiro mártir cristão e, deste modo, incentivar as lideranças das comunidades a imitar Estêvão e a confiar que as mesmas qualidades que o Espírito Santo concedeu a Estêvão serão também concedidas aos cristãos que, com destemor, se empenham pelo Reino de Deus. Pode ser que a variação nos dons se deva às urgências de cada comunidade. Dito de outro modo, cada copista acrescentava e combinava as qualidades de Estevão para responder melhor à situação concreta que sua comunidade enfrentava. Isso nos incentiva a perguntar: “Quais dons/qualidades nossa comunidade mais necessita hoje?”.

3.3. At 20,24/27

Grego:

hōs teleiōsai tòn drómon mou

metà jarâs

Tradução:

contanto que eu complete minha carreira

com alegria

Variantes e manuscritos, conforme NA27 e NA28, UBS4 e UBS5:

: א(IV).A(V).B(IV).D(V).𝔓41(VIII).33.lat.syp.co

metà jarâs

: C(V).E(VI).L(IX).Ψ(III/IX).323.614.1739.𝔐.syh

A ECM não apresenta novas lições variantes. Apenas acrescenta manuscritos que suportam uma ou outra lição, e ainda os que não podem com certeza ser ligados a nenhuma delas.

A opção do comitê editorial (crítica textual clássica):

A lição mais breve tem maior apoio nos manuscritos mais antigos. A presença de járitos, “graça” ao final do versículo pode ter induzido o copista a inserir metà jarâs, “com alegria”, como modo de aliviar a tensão da triste despedida de Paulo.

Os comentadores:

Nem todos todo os autores baseiam seus comentários em versões que contêm o complemento “com alegria”. Mesmo entre esses, poucos dão alguma importância a ele. Os comentadores chamam a atenção para os paralelos do v. 24 com afirmações semelhantes em 1 Cor 9,24; 2 Tm 4,6-8 e Fp 2,17. Os comentadores falam também do paralelo entre o “anúncio da paixão de Paulo” e os “anúncios da paixão de Jesus”: Paulo repete o que Jesus já havia feito em Lc 9,22.43b-45 e 18,31-34, isto é, anuncia que está indo para Jerusalém e que lá sofrerá. Paulo não tem certeza se morrerá ou não, mas afirma estar preparado para o pior, pois o que lhe importa mesmo é “testemunhar o evangelho da graça de Deus”. Esta frase, embora não apareça nas cartas paulinas, é um excelente resumo do evangelho anunciado por Paulo. E, como no caso de Jesus, tal anúncio provoca perplexidade entre os ouvintes.

Para a leitura latino-americana:

Paulo expressa sua convicção de que chegará às últimas consequências do anúncio do evangelho. Muito acima da incerteza do futuro e dos sofrimentos enfrentados, Paulo tem uma única preocupação: manter-se fiel a Cristo. A inserção de metà jarâs, não só ameniza a tristeza da despedida de Paulo, mas também acrescenta um novo aspecto ao seu testemunho: o apóstolo das nações é exemplo e modelo para os missionários, tanto pela sua adesão radical a Cristo, como pelo espírito com que desempenha sua missão. O acréscimo destas palavras na boca de Paulo pode ter sido um modo de o copista encorajar sua comunidade nos momentos de tribulação por fidelidade ao evangelho: não com resignação e medo, mas com decisão e alegria.

3.4. 1 Pe 1,22/18 e 19

Grego:

Tàs psyjàs hymōn hēgnikótes en tēi hypakoēi tēs

alētheías

dià pneúmatos

hagíou

písteōs

dià pneúmatos

caritatis (= agápēs)

Tradução:

As vossas almas são purificadas pela obediência à

verdade

pelo Espírito

Santo

pelo Espírito

caridade

Variantes e manuscritos, conforme NA27 e NA28, UBS4 e UBS5:

alētheías

: 𝔓72(III/IV).א(IV).A(V).B(IV).C(V).D(V).Ψ(VIII/IX)

dià pneúmatos

: Byz [K(IX).L(IX).P(IX)].5.307.442.642.1175.Lect.slav

hagíou

: l 592

písteōs

dià pneúmatos

: vgms.Priscillian.Speculum.Gildas

caritatis (= agápēs)

: itar.vg

A ECM não apresenta novas variantes; apenas enumera individualmente os manuscritos das variantes para 1 Pe 1,22/18 (alētheías) e 1 Pe 1,22/19 (o acréscimo dià pneúmatos):

18

a

alētheías

... Clem. Did. Olymp. PsOec. L:T. K:SB. S:PH. Ä

b

písteōs

L:S

c

agápēs

L:V

P74. P81. 048. 093. 0206. 0247 [...] L1442S. L1575. Pr

19

a

om.

P72. 01. 02. 03. 04. 044 [...] L:V. K:SB. S:PH. G. Ä

b

dià pneúmatos

5.69.104.180 [...] Byz. PsOec. L:S A.. SI:ChMDS

c

dià pneúmatos hagíou

L1281

P74. P81. 048. 093. 0206. 0247 [...] L156. L11126. L1442S. L1575. Pr

A opção do comitê editorial (crítica textual clássica)

O Textus Receptus segue unciais tardios e a maioria dos minúsculos e, após alētheías, “(da) verdade”, acrescenta a frase dià pneúmatos, “pelo Espírito”. Estas palavras, no entanto, estão ausentes dos manuscritos mais antigos. Tal ausência não pode ser explicada se elas fossem a lição original; o acréscimo, porém, pode ser explicado como uma expansão teológica introduzida por um copista. Por outro lado, vários antigos manuscritos latinos e a Vulgata substituem alētheías por caritatis, enquanto outros manuscritos acrescentam fidei per spiritum “fé pelo Espírito”. A avaliação do comitê para a lição alētheías foi {A}.

Os comentadores:

Há de se notar que Pedro não confunde “purificar” com “santificar”. O verbo agnízō, “purificar”, é um termo técnico no judaísmo para falar da purificação cultual. Pedro aplica este verbo a um conceito tipicamente helenista: a alma. No mundo helenista, falava-se da necessidade de libertar a alma de toda forma de paixão. Pedro parece propor exatamente o inverso: a alma do cristão se purifica quando imita os sentimentos e a paixão de Cristo. No dia a dia da comunidade, isso se realiza no amor fraterno, sem hipocrisia nem interesse, pois um irmão é responsável pelo outro e, por isso, todos devem crescer na afeição mútua. A verdade é o evangelho; assim, “obedecer a verdade” não implica uma adesão intelectual a um enunciado filosófico, e sim uma mudança de comportamento, que envolve a alma e o coração. Observo ainda que, o paralelismo psyjáskardías, “almas – corações”, funciona como merisma: a alma, como a essência da vida, a sede do pensar, querer e sentir; o coração, como a sede da consciência. Assim, o amor fraterno é uma decisão consciente que deve ser renovada constantemente na comunidade.

Para a leitura latino-americana:

Das várias combinações possíveis para este versículo, chama atenção a lição variante da Vulgata: “vossas almas serão purificadas pela caridade”. Se o tradutor substituiu alētheías por caritatis de forma voluntária ou não, é difícil dizer. Sempre é possível que ele tenha confundido o substantivo alētheías com o verbo agapsate, “amai”, mais ao final do versículo, não obstante estas duas palavras estejam longe uma da outra. De qualquer forma, na Vulgata, o uso de caritatis estabelece uma diferença com o sentimento citado na frase seguinte: fraternitatis amore “amor fraterno, afeição”, que no grego é definido com o termo filadelfían, “amor fraterno”. Voluntaria ou não, esta mudança liga a purificação moral a um amor mais profundo, que não se resume a um sentimento de simpatia pelo irmão de comunidade, mas é uma atitude sincera de acolhimento e doação.

3.5. 1 Jo 3,7/16

Grego:

ho poiōn tn

dikaiosýnēn

díkaiós estin

eleēmosýnēn

Tradução:

quem pratica a

justiça

é justo

misericórdia

Caso encontrado unicamente na ECM 11:

a

dikaiosýnēn

...12

1881C. L:VT. K:SBV. S:PH

b

eleēmosýnēn

180

13

a/b

1881*f

14

522

15

P9. P74. 048. 0245. 0296. 1936. L60. L156. L1126. L1442. Pr

A crítica textual clássica:

A lição dikaiosýnēn, “justiça”, é unânime e não há motivo para colocá-la em dúvida. Os aparatos críticos das várias edições da NA e da UBS nem mesmo fazem menção a eleēmosýnēn, “misericórdia”, termo que, no NT é usado somente treze vezes (3x em Mt, 2x em Lc, 8x em At). Além disso, o manuscrito 180 é do século xiii e, portanto, eleēmosýnēn deve ser considerada uma mudança secundária.

Os comentadores:

Dada a consistência da leitura dikaiosýnēn, os comentadores nem mesmo citam a lição eleēmosýnēn. A frase ho poiōn tn dikaiosýnēn, “quem pratica a justiça”, retoma 2,29 e forma um paralelo com o início do v. 8: ho poiōn tn hamartían, “quem pratica o pecado”. A passagem é dirigida contra os mestres gnósticos, que elaboram muitas explicações para justificar o pecado. Para eles, a justiça é um objeto de especulação e uma situação espiritual, não concreta e prática. Além disso, os comentadores discutem se a última frase do versículo – kaths ekeînos díkaiós estin, “assim como ele mesmo é justo” – é autêntica ou uma interpolação, bem como a quem ela se refere: ao Pai ou a Jesus.

Para a leitura latino-americana:

Não obstante tardia e presente apenas em um manuscrito do século xiii, a substituição de dikaiosýnēn por eleēmosýnēn abre uma interessante perspectiva para se definir o que significa “ser justo”: aqui, uma atitude de compromisso com o próximo necessitado. Talvez o copista tenha querido dar um aspecto de urgência ao comportamento do justo, que não só luta para o estabelecimento da justiça no todo da sociedade, mas também se empenha no socorro aos necessitados enquanto esta justiça mais ampla não se impõe. Esta perspectiva é bastante atual e serve de profundo questionamento para nossas comunidades e para toda a Igreja da América Latina.

Algumas considerações finais

A crítica textual nos ensina que as lições variantes de um mesmo texto bíblico podem ser inconscientes (erro de ouvido, parablepse, confusão de letras etc.) ou conscientes (glosa, mudanças por razões teológicas, correções linguísticas). Algumas vezes, é fácil perceber se a mudança foi consciente ou não. Outras, porém, são de difícil decisão. Quase sempre, a crítica textual é usada de modo sumário, para se estabelecer o texto mais provavelmente original sobre o qual o exegeta trabalhará em um comentário ou em um artigo. Muitas vezes, é feito um uso quase que meramente ilustrativo das lições variantes, apenas para confirmar a escolha dos responsáveis pela edição crítica.

É necessário que caminhemos para um diálogo livre de preconceitos. Por um lado, somos chamados a reconhecer que não só a crítica textual, mas também o método histórico-crítico e outros passos metodológicos da exegese bíblica podem ajudar a hermenêutica latino-americana a crescer, amadurecer, corrigir eventuais desvios, obter maior consistência e superar minimalismos e superficialidades. Por outro, a hermenêutica latino-americana pode ajudar os métodos clássicos de exegese a superar uma leitura quase que idealista do texto bíblico, como se ele existisse para si mesmo.

Como contribuição para tal diálogo, este estudo quis enfatizar a possibilidade de que algumas lições variantes, conscientes ou não, tenham mais a nos ensinar do que a simples comprovação de qual era a primeira redação de um versículo. Concretamente, propôs a necessidade de assumir que, em alguns casos, as mudanças foram conscientes e voluntárias, como modo de os copistas aplicarem o texto à realidade de pessoas e de comunidades. Não se trata de ler o que poderia ter sido escrito e não foi, isto é, de fazer a exegese do texto que poderia ter existido, mas não existe. Este estudo discutiu redações efetivamente existentes, por decisão consciente do copista ou não; tomou como exemplos versículos exatamente como eram proclamados nas assembleias litúrgicas e usados na doutrinação. Afinal, textos com pequenas interferências podem ter grandes efeitos na vida da comunidade.

Aos exemplos pinçados e apresentados neste estudo, outros poderiam ser acrescentados, tais como:

– Lc 11,2: “Venha o teu Espírito sobre nós e purifica-nos” em lugar de “Venha o teu Reino”;

– Rm 14,21: “Bom é não comer carne, nem beber vinho, nem fazer algo no qual teu irmão tropece”, com o acréscimo de “ou se escandalize, ou se enfraqueça”.

– O final breve de Marcos, sumariamente qualificado com “apócrifo”, poderia ser redimensionado: a razão de ser da Igreja é levar “do Oriente ao Ocidente o anúncio santo e incorruptível da salvação eterna”, o que implica, ao mesmo tempo fidelidade ao evangelho, mas também inculturação onde quer que ele seja anunciado.

– O texto “ocidental” de Atos dos Apóstolos, que apresenta um relato temperado com aspectos edificantes e com títulos cristológicos mais desenvolvidos. O maior relevo dado a Pedro e Paulo poderia servir de modelo para líderes comunitários em situações semelhantes às enfrentadas por aqueles apóstolos. Além disso, a luz fortemente negativa sob a qual é colocada o judaísmo poderia servir para questionar se a comunidade não está tomando um caminho de fechamento e hipocrisia.

Lições variantes podem ter nascido do desejo de ajudar as pessoas, e a comunidade como um todo, a compreender e colocar em prática o ensinamento de cada versículo bíblico. Ao agir assim, o copista assume também o papel de hermeneuta e opera mudanças (pequenas ou grandes) para tornar mais claro e fluente um ou outro versículo. Nesta perspectiva, as lições variantes são indicações de como determinado versículo deveria ou poderia ser lido, apropriado e aplicado na vida prática e cotidiana, numa tradição interpretativa que se prolonga até nossos dias e em nosso continente. Em resumo, a hermenêutica latino-americana tem a missão de continuar aquela tradição de apropriação e releitura dos textos bíblicos, para que “a verdade que Deus quis que fosse consignada nas Sagradas Letras” (DV 11) se mantenha viva, situada e atual, “útil para instruir, para refutar, para corrigir, para educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e qualificado para toda boa obra” (2 Tm 3,16-17).

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[recibido: 25/03/21 – aceptado: 23/07/21]


1 Encuentro del Grupo Regional de Latinoamérica y el Caribe de la Studiorum Novi Testamenti Societas, na Pontificia Universidad Católica de Chile (Santiago, 5 a 8 de setembro de 2018); Congreso Internacional de Estudios Bíblicos en el 80.º Aniversario de la Revista Bíblica, na Pontificia Universidad Católica Argentina (Buenos Aires, 16 a 19 de julho de 2019).

2 De fato, não encontrei relevantes discussões acerca do assunto em comentários e artigos acerca dos textos aqui analisados. Eis a razão da escassez de autores latino-americanos nas referências bibliográficas.

3 Sob a pena de oferecer informações já conhecidas, penso que seja oportuno recordar algumas equivalências entre as edições críticas publicadas pela Deutsche Bibelgesellschaft e que se tornaram as mais difundidas e aceitas como edições padrão para exegetas e tradutores. Primeiro, o consagrado Novum Testamentum Graece, publicação conhecida pelo sobrenome de seus principais editores (Eberhard e Erwin) Nestle e (Kurt e Barbara) Aland e, por isso, normalmente designada Nestle-Aland ou, de forma abreviada, NA. Depois, o igualmente reconhecido, mas de história mais recente, The Greek New Testament, da United Bible Societies, por vezes citado como UBS, por vezes como GNT. Neste estudo, utilizo, respectivamente, as abreviaturas NA e UBS, seguidas do número da edição: NA27 = Nestle-Aland, 27ª edição. Ao longo do processo dessas publicações, houve um alinhamento do texto estabelecido e dos aparatos críticos, de modo a se fixar as seguintes correspondências: NA26 = UBS3; NA27 = UBS4; NA28 = UBS5. Para os anos de publicação de cada uma delas, ver, mais adiante, as referências bibliográficas.

4 Primeira edição, de 1971, para a UBS3; segunda edição, de 1993, para a UBS4.

5 Durante a correção deste artigo, foi publicado o volume do Evangelho de Marcos do Novum Testamentum Graecum Editio Critica Maior. Não obstante, como este texto compila minhas apresentações nos encontros a que me referi no início, mantive inalterada a redação original. Apenas anoto que a ECM traz, para cada texto, uma maior gama de variantes que, no entanto, não acrescentam algo de relevante que justificasse qualquer modificação aqui.

6 Os números romanos entre parênteses indicam os séculos; os números indo-arábicos, os anos.

7 Nesta mesma linha, a nota a Mc 1,40-45 da Nova Bíblia Pastoral, publicada no Brasil, em 2014. Entre os textos analisados neste artigo, Mc 1,41 é o único em que a Nova Bíblia Pastoral assume uma leitura variante e nela baseia o comentário ao pé da página. Em todos os demais casos, os tradutores e anotadores seguem o texto estabelecido nas edições críticas.

8 Assim Metzger, Textual Commentary, p. 517 (1ª edição) e p. 457 (2ª edição). Nos aparatos críticos de NA e UBS, porém, Orígenes está arrolado entre os que suportam a lição elpízei, e Efrém não é citado. Tal divergência talvez deva ser incluída entre os poucos casos em que o aparato crítico da NA diverge de seu “gêmeo” da UBS: manuscritos que na NA suportam uma lição, na UBS está entre os que suportam outra.

9 Para ilustração, ver as lições variantes de 1 Jo 3,7, mais adiante.

10 Para informações mais detalhadas e um exemplo completo, cf. minha recensão ao volume III, Die Apostelgheschichte / The Acts of Apostles, em Perspectiva Teológica 49/3 (2017) 703-707. Disponível em http://www.faje.edu.br/periodicos/index.php/perspectiva/article/view/3895/3907. Acesso em 10/09/2021.

11 Observe-se, a seguir, exemplos da nova maneira de indicar variantes e manuscritos.

12 Indicação que esta variante é inequivocamente identificada em todos os manuscritos gregos listados na edição, exceto aqueles citados especificamente em outra.

13 Indicação de que não é possível determinar com certeza qual das variantes está neste manuscrito.

14 Indicação de que o manuscrito listado não pode ser citado aqui em razão de uma lição variante já anotada anteriormente no aparato crítico.

15 Indicação de que os manuscritos citados não podem ser inequivocamente ligados a nenhuma variante, graças a uma lacuna ou a outro defeito na unidade textual.