Carolina Bezerra de Souza
Universidade Católica de Goiás
https://orcid.org/0000-0003-1742-163X
Resumo: Textos sagrados refletem a experiência humana, onde violência e busca de sua superação são realidades. Nos Evangelhos sinóticos, encontra-se a violência expressa desde a descrição ou denúncia, passando por justificativas, mas também sua interdição e projetos de relações pacíficas. Com respeito às violências sofridas por mulheres, observa-se a divisão sexuada do espaço, exploração do trabalho, exploração dos bens, o androcentrismo, a pobreza, marginalização. Há ainda violência ao longo do processo formativo dos Evangelhos sinóticos, entendendo, a partir de Bakhtin, o discurso de Mateus e Lucas como dialógico na utilização do discurso de Marcos, ao comparar os papéis femininos das versões paralelas verifica-se estratégias para sua diminuição.
Palavras-chave: Violência. Mulheres. Evangelhos Sinóticos
Abstract: Sacred texts reflect the human experience, where violence and the search for its overcoming are realities. In the Synoptic Gospels, there is violence expressed from the description or denunciation, through justifications, but also its interdiction and peaceful relations projects. With respect to the violence suffered by women, one observes the sexual division of space, exploitation of labor, exploitation of goods, androcentrism, poverty, marginalization. There is still violence throughout the formative process of the Synoptic Gospels, understanding, from Bakhtin, the discourse of Matthew and Luke as dialogical in the use of Mark’s discourse, when comparing the feminine roles of the parallel versions one can see the strategies for its decrease.
Keywords: Violence. Women. Synoptic Gospels.
Para abordar violência de gênero em sua relação com textos do Novo Testamento, há várias camadas em que se pode trabalhar. Na camada mais externa ao texto, há consequências da sua recepção e interpretação. O próprio processo formativo e de canonização meio a estruturas patriarcais também pode ter sido um processo que ocultou e silenciou as mulheres. Nos textos em si, aquilo que é narrado ou legislado tem conteúdos violento que refletem a experiência humana dos eventos que narram e do ambiente nos quais tais eventos foram fixados em forma escrita. Esses períodos não eram pacíficos e são pontuados de lutas por sobrevivência, movimentos de resistência e de poder em sistemas patriarcais. Isso implica que algumas violências, em especial sobre as mulheres, podem ser percebidas ao longo dessas narrativas, como parte integrante daquelas vivências sociais, mas que os ambientes vivenciais poderiam ter ainda mais formatos violentos.
Porém, antes de analisar essas violências de gênero é preciso notar que muitas delas não são percebidas por algumas abordagens porque são ainda naturalizadas e consideram mulheres como subordinadas ou pertencentes aos homens, ocultando seus aspectos carismáticos de liderança. Soma-se a esse quadro, o fato de que, em parte considerável, o acesso atualmente feito aos textos sagrados na academia ainda segue um modelo androcêntrico de conhecimento que desconsidera as experiências das mulheres, suas contribuições epistemológicas e, consequentemente, a produção intelectual.
O resultado dessa violência hermenêutica e simbólica dá-se sobre as mulheres ao serem vítimas de outras violências justificadas através da religião e em diversos formatos, tanto simbólica, física, patrimonial, psicológica e a dificuldade, ou a exclusão, do acesso ao conhecimento e às funções de liderança. São consequências que perduram e que a Teologia Feminista trabalha a algumas décadas.
Se atentarmos não tanto para as narrativas, mas para o contexto histórico que cercava suas produções, perceberemos que a dominação imperial romana e suas guerras de implantação são especialmente difíceis para as mulheres e crianças. Toda espécie de violências se acumulava sobre elas. A alienação da terra, a exploração econômica (escravagismo, impostos...), a violência física (torturas, crucificações...) e simbólica da dominação cultural e política eram vivenciados por homens e mulheres, mas estas ainda eram alvo de formas específicas de violências de gênero, pois eram violentadas e exploradas sexualmente 1.
Ao lado dessa história de mulheres não contada, os processos de produção, fixação das escrituras e seleção de textos canônicos corroboram com a dominação sobre as mulheres, podendo ser considerados uma forma de violência que foi exercida para ocultar a atuação de mulheres como líderes comunitárias e formadoras de teologias, e que tem graves consequências ainda hoje. Torjensen afirma que tanto as tradições primitivas cristãs quanto a construção da história cristã primitiva foram formadas em ambientes culturais patriarcal e formam um legado corrompido pela suposição de que a atividade masculina é normativa. Os escritores cristãos viam e descreviam as atividades femininas e masculinas a partir das suas crenças sobre gênero. Estas foram moldadas em uma ideologia patriarcal e androcêntrica da divisão de espaços por gênero, baseada nos valores culturais de honra e vergonha 2.
Assim, as atuações públicas de homens e mulheres não tinham a mesma conotação e as atividades domésticas delas não eram valorizadas. Por isso, as considerações e polêmicas a respeito das atividades e da liderança das mulheres precisam ser interpretadas criticamente a partir do sistema de política sexuada do Mediterrâneo antigo e da luta por sobrevivência cultural meio a dois sistemas patriarcais, o judeu e o romano.
Principalmente os Evangelhos são escritos usando jogos de memória e em meio a conflitos. Buscam contar a história de Jesus e ressignificar a história das comunidades cristãs, por isso, misturam fragmentos de ambas as histórias. Ainda assim, refletem realidades, percepções e concepções de comunidades cristãs e suas formas, construção de identidade e de organização 3.
Como afirma Schottroff, ao observar as mulheres descritas nos evangelhos, é necessário perguntar como os evangelistas entendiam a história das mulheres que seguiam Jesus e então refletir se a narrativa é justa e correspondente ao que viveram 4. Os quatro evangelhos canônicos registram que mulheres seguiam Jesus e foram as primeiras testemunhas da ressurreição. Nos evangelhos, Jesus é mostrado em ações de curas e ensinamentos direcionados a homens e mulheres, que são retirados de situações de opressão e exclusão, em favor de um novo tipo de comunidade, cujos valores são o serviço, o amor e a entrega de vida. Ali, as relações familiares, étnicas, econômicas e sociais são transformadas através da inclusão ativa no seguimento, discipulado, ensino e uma práxis transformada e transformadora.
A pesquisa arqueológica e documental conseguiu resgatar registros de atividades de mulheres durante o cristianismo primitivo em tratados e inscrições, mostrando que elas foram apóstolas, profetizas e mestras; que exerceram diversas funções ministeriais como realizar o batismo, discipulado, presidência da eucaristia; e fizeram parte da igreja na forma de diversos cargos como bispas, presbíteras, diaconisas, viúvas e virgens. Um dos primeiros papéis das mulheres foi o de missionária-evangelista-apóstola, um papel que desafiava as normas de comportamento baseada nos conceitos de honra e vergonha e a reclusão da mulher no ambiente doméstico 5.
Ainda assim, parte das mulheres das histórias bíblicas é descrita em ambientes domésticos e, em geral, elas não participam de esferas de poder ou liderança. A práxis interna do grupo de mulheres e homens liderados por Jesus diferia da prática cultural que formou a mente dos homens que fixaram e transmitiram, principalmente por escrito, uma ética cristã para eles mesmos e as mulheres, crianças, escravos.
Não é novidade nos estudos feministas dos textos neotestamentários que controvérsias em relação ao papel das mulheres nos cristianismos originários são crescentes conforme os ministérios da igreja em expansão se institucionalizam e o lugar de culto vai migrando do espaço doméstico para o espaço público. Há textos de gêneros diferentes, compostos em proximidade temporal que tanto interditam como apresentam as funções socioeclesiais das mulheres. Assim, o conflito da inclusão-exclusão das mulheres existia desde o início do cristianismo juntamente com o ideal da construção dos novos paradigmas (veja Rom 16; 1 Cor 11–14). Ele se prolongou durante a composição dos demais textos neotestamentários na década de 80-90 (veja Lc 8,1-3; At 9;18 e 1 Tm 2) 6. Nesse sentido, é importante a análise que faremos neste artigo dos Evangelhos Sinóticos.
Soma-se a isso que apenas uma pequena parcela da população era letrada, dessa parte as mulheres era a minoria. Isso significa que a maior parte da tradição oriunda de mulheres enquanto discípulas de Jesus ou nas primeiras comunidades nas casas permaneceu oral. Assim, conforme as tradições se fixavam nas narrativas e novos textos das tradições paulinas, embora, desde o início do movimento cristão, as palavras e realizações de mulheres fizessem parte das comunidades cristãs, parte de suas contribuições ao cristianismo formativo foram ocultadas e vencidas pelas antigas formas de pensamento.
Além das perdas durante o processo formativo dos textos, o processo de canonização, que durou do segundo ao quarto século, aconteceu em meio a disputas relacionadas à liderança feminina. Isso resultou na retirada de textos que registravam ministérios apostólicos femininos, coleções de oráculos de profetizas cristãs e dos ensinamentos de mulheres (por exemplo os Atos de Paulo e Tecla, Pistis Sophia, o Evangelho de Maria) da lista canônica. Estes textos, que alimentaram e direcionaram muitas comunidades cristãs, não fazem parte do cânon. Ainda assim, permanece no Novo Testamento uma heterogeneidade em relação à função da mulher, dois modelos de participação das mulheres, com uma corrente que as submete aos homens e outra que narra sua solidariedade com Jesus e os papéis importantes que assumiram durante a expansão cristã (veja Gal 3,28 e 1 Tm 2,11-15).
Considerando essa característica da composição e seleção parciais, ou, dito de outra forma, esse processo de silenciamento no registro sobre as atividades das mulheres no movimento cristão, outra observação metodológica se faz necessária para o acesso de fontes como o Novo Testamento: elas são proclamações de fé. Isso implica que carecem de interpretação para utilização como fontes de reconstrução histórica. Quando se verifica os textos neotestamentários é difícil negar a pertença e a participação ativa das mulheres nos grupos do cristianismo primitivo, porém, ainda, essa participação é reconstruída e interpretada a partir de princípios androcêntricos. Exemplos claros disso são: a diaconia de mulheres é entendida como serviço doméstico, elas não são incluídas como discípulas de Jesus e suas palavras e atos são diminuídos ou silenciados.
Essa é uma realidade quando se trata especificamente dos Evangelhos Sinóticos. Em tais narrativas são percebidas diversas formas de violência contra as mulheres, que são reflexos da vida pobre da população da Galileia, mas também situações específicas de gênero e certo silenciamento no uso das fontes que serão especificados no item a seguir com foco nas perícopes em que as mulheres aparecem no movimento de Jesus e as perícopes paralelas a essas em Mateus e Lucas.
Métodos literários e da linguagem têm sido uma ferramenta útil na análise dos textos bíblicos em expansão aos métodos histórico-críticos e como forma de minimizar a fragmentação dos textos e dar sentido aos resultados diversos das etapas críticas. Neste trabalho, usaremos a Análise de Discurso com base nas formulações de Bakhtin para verificar o dialogismo 7 dos discursos sobre as mulheres nos Evangelhos Sinóticos.
A teoria mais aceita hoje sobre a formação dos Evangelhos sinóticos é que Lucas e Mateus usaram Marcos como uma de suas fontes. Tanto Mateus como Lucas dão suas versões para maioria das narrativas em que mulheres aparecem no Evangelho de Marcos. Nesse sentido, fazem, em seu discurso a respeito das mulheres, um diálogo com o discurso de Marcos, citando-o, modificando-o, desconstruindo argumentos e construindo os seus próprios. Com relação ao discurso de outrem, quando citado, Bakhtin afirma:
o discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação. [...] Para penetrar completamente no seu conteúdo, é indispensável integrá-lo na construção do discurso. [...] Quando passa a unidade estrutural do discurso narrativo, no qual se integra por si, a enunciação citada passa a constituir ao mesmo tempo um tema do discurso narrativo. Faz parte integrante de sua unicidade temática, na qualidade de enunciação citada, uma enunciação com seu próprio tema: o tema autônomo então torna-se o tema de um tema 8.
Os conceitos de polifonia e dialogismo dos discursos trazidos por Bakhtin, podem ajudar a dar profundidade ao estudo sinótico tornando possível verificar a intencionalidade das alterações de Mateus e Lucas no discurso original marcano. Se um trabalho literário não apresenta ou manipula ou ignora a diversidade de pontos de vista, é considerado monológico internamente, enquanto os que permitem essa presença são dialógicos e serão polifônicos se o autor orquestra o seu ponto de vista e os demais em igualdade. Os trabalhos literários antigos, desde a tragédia grega, o romance helenista e romano, e aqui enquadramos também os Evangelhos e outros textos bíblicos, são geralmente monológicos em seu interior. Embora reflitam a heteroglossia 9 cultural, pois exploram o dialogismo dos discursos sociais através da criação/reprodução de diálogos dentro da narrativa, do uso de várias línguas (latinismos e hebraísmos) e referências linguísticas e de diversos subgêneros literários, essa construção textual é feita de forma manipulada, tudo isso fica coordenado sob a voz do autor e submetido aos seus valores. Portanto, a presença dessas vozes é deturpada e, por isso, esses trabalhos permanecem monológicos sob a ótica do interior da história contada 10, já que não refletem com veracidade e igual peso as vozes sociais e sim a opinião do autor sobre essas vozes.
Com relação ao exterior da narrativa, no entanto, esses textos permanecem dialógicos. As suas motivações externas estão nos discursos e nas condições históricas em que vivem seus autores e receptores e as quais respondem ou corroboram. Sua construção se baseia em transmitir um conjunto ideológico a alguém usando linguagens e gêneros que são culturais, e levam ao diálogo com outros que usam dos mesmos recursos, sejam da mesma posição ideológica ou não.
Por isso, a proposta aqui não se restringe e uma análise sinótica com ênfase na violência de gênero. O conjunto de narrativas se torna importante, assim como os gêneros de discurso e a intencionalidade dos usos das outras vozes.
Na narrativa do Evangelho de Marcos, percebemos dois momentos diferentes com relação à atuação de mulheres, que estão bem de acordo com o desenrolar da narrativa, que também pode ser dividida em duas partes claras, marcadas pela geografia, pelo estilo da narrativa e pelos tipos de acontecimentos. No primeiro momento, até a metade da narrativa, a maioria das mulheres é alvo da ação de Jesus, no seu ministério de curas e ensinamentos na Galileia e em regiões não-judias 11. Com exceção da narrativa em Mc 3,20-35, essas mulheres estão inicialmente em situações de doença, desesperança e desespero, marginalizadas de alguma forma, e são, então, curadas, ou auxiliadas, e acolhidas por Jesus. É o caso das narrativas da cura da sogra de Simão, da cura mulher com hemorragia, da ressurreição da filha de Jairo, do exorcismo da filha da sirofenícia.
Essas histórias de milagre são tanto formas de se colocar a heteroglossia do texto como são gêneros de discurso típicos dos círculos populares da época de formação dos textos. Elas são veículos de comunicação com a comunidade e foram ao encontro de suas necessidades. Marcos escolheu reproduzir, articular e preservar histórias de milagre e ditos sobre mulheres como um modelo e um paradigma que transmitisse a elas e restante da comunidade uma mensagem de inclusão que os tornasse conscientes da sua natureza física-emocional. Assim como qualquer outro membro da comunidade, as mulheres devem ter sua saúde preservada e atuação respeitada. Nos casos dessas cenas, as narrativas libertam as mulheres de papéis sociais e cúlticos restritivos para que assumam novos papéis, demandantes, criativos e curativos dentro da comunidade 12.
O segundo momento se configura pela ação de Jesus em Jerusalém, em que curas já não são narradas, há forte ênfase nos ensinamentos e confronto com adversários e, no ápice, a paixão de Jesus. As mulheres aqui não mais aparecem como pessoas a serem curadas, mas como exemplos de fé ativa, dedicação e serviço e compromisso com a comunidade proposta por Jesus. O que ambas as partes têm em comum é que essas mulheres estão à margem da estrutura social por alguma questão, que pode ser estrutural, religiosa, política, cultural...
Até o momento da morte de Jesus na cruz (15,40.41), quem tem acesso ao texto não percebe claramente a presença das mulheres entre os discípulos de Jesus. Até ali também, as personagens femininas são anônimas. Embora a maioria das estudiosas feministas olhe para esses dois fatos como uma demonstração do androcentrismo do texto marcano 13, o que se pode perceber na evolução do discurso é que, a cada cena, as mulheres acrescentam possibilidades de atuação, são moldadas também as ideias de discipulado e diaconia. O fato de não se ter registrado os nomes das mulheres ao longo da narrativa se enquadra melhor em uma estratégia narrativa de elevação do papel feminino do que de exclusão 14. Isso possibilita que qualquer mulher se identifique com as que ganham essas possibilidades e evita a personalização do fato narrado. A elevação das discípulas vai se dando concomitante a uma caracterização negativa dos discípulos homens e a ocultação das mulheres é necessária para separar esses grupos.
O final da narrativa marcana mostra que mulheres, que são enfim nomeadas, repetidamente, assumiram um lugar de autoridade e liderança no início do movimento cristão, pois para sua narrativa elas eram as únicas testemunhas de três momentos fundamentais: a morte, o sepultamento e o túmulo vazio, o que conferia a elas uma autoridade ímpar. Essa lista final identifica essas mulheres como lideranças reconhecidas do cristianismo nascente.
As mulheres nomeadas formam um paralelo narrativo ao grupo de discípulos mais próximos de Jesus 15. O discurso sobre o papel das mulheres no Evangelho de Marcos desconstrói estereótipos e constrói nova forma de atuação de mulheres fazendo-as superiores aos doze discípulos, uma vez que esses têm a caracterização vacilante com respeito à fé e ao entendimento do Reino de Deus.
A presença das mulheres ao longo da narrativa está sempre conectada a alguma peripécia que precisa ser contornada e facilmente está também associada a alguma forma de violência que se estende desde a situação vivencial pobre até o menosprezo de homens. No quadro abaixo, estão reunidas as cenas do Evangelho de Marcos em que aparecem mulheres em relação com Jesus ou seu movimento e são apontados protagonismos e violências 16.
Quadro 1: Textos sobre mulheres em contato com Jesus no Evangelho de Marcos e características de interesse
Texto |
Característica comunitária construída na passagem |
Protagonismo Feminino |
Violência |
Violência Interpretativa |
A cura da Sogra de Simão 1,29-31 |
Movimento solidário e inclusivo: a comunidade de discípulos só está completa com a participação integral de todas as pessoas |
A primeira diaconisa: serviço continuado ao grupo |
– Casa patriarcal – Mulheres em espaços domésticos – Caracterizadas pela associação com figuras masculinas – Vítimas de doenças pela desnutrição e pobreza |
Serviço interpretado como tarefa doméstica |
A comunidade definida como família 3,31-35 |
– Sem hierarquia patriarcal (não há pais) – Inclusiva – Critério de pertencimento era fazer a vontade de Deus |
– Na comunidade a mulher assume dois papéis: mãe e irmã, os homens são apenas irmãos |
||
A cura da filha de Jairo 5,21-24.35-43 |
– Fé é uma característica de inclusão e não status social – Abandono da cultura religiosa anterior – A mãe é parte integrante da família nos momentos importantes |
– A moça representa Israel precisando da intervenção de Jesus – A narrativa de ressurreição de uma mulher é claramente ligada ao tema do messianismo de Jesus por repetição de elementos narrativos. |
– A moça em idade de casar é infantilizada pelo pai que a trata como criança pequena –Jairo sai ao espaço público, a esposa permanece em casa, divisão sexuada de espaço. |
|
A cura da mulher com hemorragia 5,21-43 |
– Fé é uma característica de inclusão e não status social – As pessoas precisam ser tratadas integralmente e não excluídas por padrões de impureza – As mulheres têm sua religiosidade reconhecida e a comunidade enfrenta o preconceito cúltico da comunidade judaica. |
– A mulher representa Israel em necessidade de cura – Resiliência – A mulher é responsável pela sua cura independente da vontade de Jesus – A mulher tem voz em ambiente público e testemunha sua fé, suas ações e sua cura. |
– Exploração monetária e empobrecimento de mulheres – Isolamento social de mulheres doentes e impossibilitadas de ter filhos – Marginalização religiosa de quem não se enquadrava em critérios de pureza – Menosprezo por homens que não compreendem a situação |
|
O exorcismo da filha da sirofenícia 7,24-30 |
– A comunidade cristã quer acolher já no momento da criação do texto os não–judeus que entendem Jesus como Senhor |
– Uma mulher estrangeira tem uma discussão teológica com um mestre – Jesus se diz convencido por sua palavra – Resiliência – Capacidade de argumentação – Profetismo: a mulher antecipa a inclusão dos gentios que era escatológica – Somente essa personagem chama Jesus de Senhor |
– Precedência judaica e preconceito étnico – Isolamento social: a filha endemoniada a afastava de seu povo – Marginalização religiosa: a etnia a afastava dos judeus |
– A atitude da mulher é considerada de fé e não de protagonismo e ação. – Há interpretações em que a cena se configura como um teste que Jesus faz com a mulher ao invés de ser convencido por ela |
A oferta da viúva pobre 12,41-44 |
– Entende que os judeus podem carregar os valores do Reino de Deus – O valor das pessoas não é dado por suas posses – A pobreza não é uma condição aceita pelo grupo |
– Devoção – Capacidade de compartilhar o pouco – Confiança em Deus – Ação de desperdício contra a lógica de mercado 17 |
– Extrema pobreza que não é amparada pela estrutura religiosa e nem pelos ricos que estão ali – Menosprezo por homens |
– Há interpretações que chancelam esse tipo de oferta ao invés de entender a cena como crítica ao sistema religioso que não redistribui e não ampara os necessitados |
A unção de Jesus em Betânia 14,3-9 |
– Acolher as necessidades internas não está abaixo de atender os pobres – O cuidado para com os pobres é para ser feito sempre |
– Ação criativa, desapegada e solidária da mulher ao entender que Jesus morreria: ela era discípula – Ação de desperdício contra a lógica de mercado – A unção é ação litúrgica de honra e oferta de amor realizada por uma mulher – A única unção e o reconhecimento da messianidade de Jesus são feitos por mulher – A memória da ação feminina é incorporada ao Evangelho – Ação feminina compõe mais uma previsão da morte de Jesus |
– Divisão de espaço por gênero – Menosprezo por homens – Desqualificação da mulher pelo crescimento da imagem masculina – Desqualificação da mulher pela diminuição do significado das ações femininas: desperdício |
– A mulher é entendida como uma pessoa rica, mas isso não é claro no texto. – Apesar da defesa de Jesus, a mulher continua sendo vista como tola emotiva – A unção não é vista como litúrgica – O foco da narrativa é colocado na presença constante dos pobres como profecia da sua existência em todo o tempo. |
Mulheres como testemunhas 15,40–16,8 |
– Marca sua origem com a liderança de mulheres: Maria Madalena, Maria, Maria e Salomé – Vê na atuação de Jesus na Galileia seu lócus teológico |
– As mulheres como paradigma de discipulado: serviço, seguimento prolongado, fidelidade ante a cruz –Paralelo entre as discípulas nomeadas e os discípulos – As mulheres foram corajosas e arriscaram sua vida pela fidelidade a Jesus – As mulheres mantiveram um grupo coeso mesmo diante da violência, enquanto os demais discípulos fugiram – Retornam para homenagear o mestre – São relembradas pelo anjo dos ditos de Jesus – São enviadas pelo anjo para recompor com elas a comunidade cristã para encontro com Jesus ressuscitado |
–Serviço era interpretado como doméstico – Mulheres interpretadas como medrosas que não cumpriram sua missão, quando o temos que apresentaram podia ser reação ao numinoso. |
Fonte: Autoral
O que se pode perceber a partir do quadro é que as violências interpretativas, oriundas dos lugares-comuns em que atuam fortemente as concepções androcêntricas, diminuem a atuação das mulheres. Em especial, conduzem a um acesso da narrativa que retira das mulheres os seus papéis de atuação como liderança eclesial: a diaconia entendida como serviço doméstico, o debate teológico que define a formação comunitária torna-se um teste de fé, a ação litúrgica torna-se irrelevante, atos de solidariedade são vistos como meramente emocionais e, por fim, as mulheres que são enviadas pelo anjo são entendidas como medrosas que não cumprem sua missão.
Também a reunião desses textos demonstra que a narrativa aponta uma série de violências que as personagens vivenciam. A presença dessas violências num texto com uma construção positiva das mulheres denota a denúncia do texto a respeito das condições de vida das mulheres. A doença, infantilização, marginalização, exclusão, exploração e pobreza fazem parte de um conjunto de vivências de mulheres ainda no tempo da composição do texto e esse conjunto não se faz coerente com o Reino de Deus que impele a comunidade a produzir o evangelho e a buscar uma nova forma de vida comunitária.
Ao mesmo tempo em que retrata violências, o texto de Marcos propõe um novo modelo de convivência. A sogra de Simão e seu serviço contínuo mostram a resposta de fé comunitária e, já no início do evangelho, a possibilidade da ministração feminina como oriunda da fé e cura. A história de mulher com hemorragia toca no âmago da discriminação cúltica dos judeus. Esta personagem é um símbolo para todas as mulheres que estavam na periferia das atividades religiosas, pois articula a importância das mulheres para a comunidade sociocúltica, ela sai do silenciamento e da condição de solidão para a de membro da família, relação impessoal para pessoal, do completo rompimento da sua vida pessoal, social e cúltica para a completude. Em conjunto com a filha de Jairo, há duas mulheres representando Israel com problemas de impureza que são salvas pela fé em Jesus. A cena da mulher sirofenícia, dá lugar aos cristãos oriundos de outros grupos religiosos que não os judeus e abre espaço para a produção teológica feminina. As mulheres que entregam a vida e servem são os exemplos de liderança e discipulado.
No discurso mateano sobre as mulheres, permanecem protagonismos e visões positivas de personagens femininas. A presença de mulheres traz ambiguidade às tradições patriarcais e colaborações para a construção da ideia de Reino dos Céus, é o caso das mulheres na genealogia de Jesus.
Mateus assume a estrutura da história de Marcos, por isso, reescreve quase todas as cenas de Marcos analisadas acima, com exceção da oferta da viúva pobre. O faz na mesma ordem de sua fonte, com intervenções e algumas diferenças de contexto. Tais diferenças ficam claras na continuidade da comparação apresentada no Quadro 2 18, onde são apontadas as diferenças da versão de Mateus para os textos analisados acima.
Quadro 2: Textos paralelos no Evangelho de Mateus e as características de interesse na relação com Marcos
Texto em Mateus |
Alteração com relação a Marcos no protagonismo de mulheres e ação comunitária |
A cura da Sogra de Pedro 8,14-15 |
– Não há mais o movimento solidário e inclusivo: Jesus percebe a mulher doente e toma a iniciativa da cura. – A mulher serve apenas a Jesus, mas ainda o faz continuamente, ela segue como a primeira diácona. |
A comunidade definida como família 12,46-35 |
– Não há mudança relevante |
A cura da filha de Jairo 9,18-19.23-26 |
– A menina está morta desde o início, dado é que Jesus lidará com sua morte, que não é um perigo gerador de tensão na cena. – Como a idade da menina não é informada, ela não representa Israel. – Não há separação do grupo de três discípulos para o momento em que ela é revivificada, por isso, a cena não se conecta tão fortemente ao tema do messianismo de Jesus. – A mãe não aparece como parte integrante da família nos momentos importantes. |
A cura da mulher com hemorragia 9,19-22 |
– Não descreve a situação da mulher com os detalhes de empobrecimento e das diversas tentativas de cura. – A mulher não é protagonista da sua cura, que se dá sob a anuência de Jesus. – A mulher não fala em público sobre sua situação e Jesus parece saber tudo o que se passava. – Ainda assim permanece a ideia da inclusão das mulheres na comunidade cúltica. |
O exorcismo da filha da sirofenícia 15,21-28 |
– A passagem tem um trecho acrescentado que muda o argumento contra os gentios da inclusão posterior para a exclusão. Por isso, com a resolução do conflito posto, há base teológica para que a comunidade cristã acolha os não-judeus que têm fé, se colocando contra o argumento do judaísmo da exclusão de gentios. – O desespero da mulher clamando em ambiente aberto não comove Jesus e é encarado como importunação. Jesus se convence pela fé da mulher, que é uma questão subjetiva, e não por sua argumentação, o que diminui a força da chancela para a argumentação teológica feminina. |
A oferta da viúva pobre |
– Não narrada em Mt |
A unção de Jesus em Betânia 26,6-13 |
– Ação da mulher tem diminuído seu aspecto criativo e solidário, mas mantém a característica de desapego e continua implicando que, por entender que Jesus morreria, a mulher ouvira sua previsão e, portanto, era uma discípula. |
Mulheres como testemunhas 27,55–28,10 |
– Somente duas mulheres são nomeadas, Maria Madalena e Maria. – O texto não menciona a intenção de unção por parte das mulheres na visita ao túmulo, o que reforça o paradigma do seu discipulado. Elas são enviadas pelo anjo e por Jesus, a quem são as primeiras a encontrar, para recompor a comunidade dos discípulos para encontro com Jesus ressuscitado. Mas, as mulheres não estão entre os que encontram Jesus na Galileia e nem são enviadas por ele a fazer discípulos, mesmo sendo as portadoras das boas novas e as primeiras a encontrá-lo. Os 11 discípulos são a autoridade missionária, pois reencontram Jesus na Galileia e são enviados a fazer discípulos, portanto Maria Madalena e Maria têm sua autoridade suplantada pelo encontro dos 11 discípulos com Jesus. |
Fonte: Autoral
A fé é um tema especial para Mateus, assim como a justiça, misericórdia e a missão, tudo isso dentro de um quadro de valorização da herança de Israel e aprofundamento das questões éticas. A fé é a condição necessária aos milagres de cura e exorcismos, mas também o motivador de profecias e entregas de vida. Para dar mais ênfase ao tema da fé, o Evangelho de Mateus diminui o aspecto de ação comunitária do grupo que cerca Jesus quando comparado ao Evangelho de Marcos, permanecendo mais fiel a sua fonte nas palavras de Jesus do que nos acontecimentos narrados. No conjunto da narrativa, protagonismo de Jesus é muito mais forte do que em Marcos, a sua caracterização como verdadeiro, sábio, onisciente e poderoso é aprofundada e seu ponto de vista é tido como normativo 19. As narrativas aparecem resumidas aos pontos principais relacionados a milagres e afirmações de Jesus, com caracterizações e ações de outros personagens reduzidas.
Observando a sequência de cenas com personagens femininas, percebe-se que as mulheres estão inseridas na comunidade cristã, são por esta consideradas e tratadas mesmo que antes fossem vistas como impuras, estrangeiras, pobres ou ricas. Comparando com a fonte marcana, elas ainda são positivamente caracterizadas em relação aos doze discípulos vacilantes e terminam o texto como discípulas exemplares e são únicas testemunhas da morte, sepultamento e ressurreição.
Diferentemente do Evangelho de Marcos, em Mateus, Maria Madalena e Maria não foram ao sepulcro para ungir Jesus, o que caracterizaria um erro de compreensão do que Jesus dissera, ou falha na fé, mesmo que fosse uma ação de devoção ou amor. Na versão mateana, elas parecem buscá-lo. Como eram as únicas fiéis, foram as primeiras a ver Jesus ressuscitado, cumpriram a missão confiada e foram o pivô da restauração da comunidade de discípulos 20.
Mas a consequência da não reprodução completa da estratégia narrativa é grave com respeito aos papéis comunitários que elas poderiam assumir na comunidade. As mulheres, que em Marcos vão ganhando espaço, não o conseguem em Mateus. A sogra de Simão não é entendida como membro atuante da comunidade e importante a ponto de haver um movimento a favor dela, com mais dificuldade ela ainda pode ser caracterizada como a primeira diácona, mas seu serviço era pessoal a Jesus. A filha do chefe não representa Israel e a mãe dela não tem espaço no lugar da sua ressurreição. A mulher com hemorragia não consegue sozinha sua cura e não fala em público sobre sua condição e atitude. A mulher cananeia é elogiada pela fé e não pela palavra ou argumentação e sua atitude é encarada como incômodo. O aspecto criativo da unção em Betânia não é valorizado. Assim, as mulheres perdem possibilidades de atuações eclesiais que eram chanceladas: não são incluídas nas discussões públicas e teológicas, não são entendidas como profetas e suas ações litúrgicas não têm tanto valor.
A exclusão da cena da oferta da viúva pobre, retira a possibilidade da visualização concreta do sistema religiosos iníquo, que sustenta a exploração de mulheres e não ampara os que estão marginalizados, que fechava o ministério de Jesus em Marcos e levava Jesus a condenar do Templo e reafirmar a entrega de vida como o que é esperado de quem compreende o Reino de Deus. Essa crítica fica reforçada no discurso de Jesus e não na concretude de uma personagem que encarnasse essa exploração e marginalização, isso é uma dificuldade para a identificação dessas pessoas.
Por fim, apenas duas mulheres são nomeadas após a morte de Jesus. A autoridade feminina e a ideia comunitária de recomeço na Galileia que marcava o final do Evangelho de Marcos são substituídas pela autoridade dos onze apóstolos restantes, que encontraram Jesus, sem as mulheres, e pela missão para a qual foram enviados por Jesus. A isso soma-se mais uma característica de Jesus: sua fidelidade a esse grupo mais próximo de discípulos homens, apesar de suas falhas. O novo começo em Mateus não é marcado pela procura por Jesus por parte de um grupo comunitário, de discípulos e discípulas, como era no Evangelho de Marcos, mas pela reintegração e envio desses onze homens.
Ao analisar estes trechos percebemos que as pequenas modificações nas cenas visando o crescimento do protagonismo de Jesus, geraram uma grande perda de representação e de papéis femininos na comunidade cristã que gera esse Evangelho. Aparenta então que para essa comunidade, as mulheres parecem exercer papéis apenas internos à comunidade em serviço, fidelidade e demonstrações de fé.
A crítica feminista de Lucas caminha em duas vertentes contrárias: a primeira considera que o Evangelho é positivo para os papéis femininos, com mulheres retratadas positivamente e integradas às funções do movimento de Jesus. A segunda entende que os objetivos do Evangelho para as mulheres são silenciá-las e controlar sua atuação, de modo que se comportem bem, mas não atinjam lugares de decisão nas comunidades cristãs.
Ao todo, o Evangelho apresenta 42 menções a mulheres. Lucas apresenta uma série de cenas com protagonistas femininas que não constam nas narrativas de Marcos e Mateus, essas são mais de 23 menções. Nas cenas sobre o nascimento e infância de Jesus, Maria e Isabel são herdeiras das tradições proféticas. Lucas reconhece desde uma etapa mais precoce do ministério de Jesus a presença de mulheres (8,1-3) nomeadas, Maria Madalena, Joana e Suzana, e já apresenta seu paradigma sobre essa presença feminina: elas o acompanhavam juntamente com os doze discípulos pelas cidades da Galileia e o serviam com aquilo que era possível 21.
Sein e Ramos nos relembram a estratégia de Lucas de criar pares homem-mulher para cada ação narrativa 22. Por exemplo, Simeão e Ana são profetas; Jesus ressuscita o filho da viúva em Nain e a filha de Jairo; há o grupo de discípulos nomeados, como há um grupo de discípulas nomeadas, ambos são evocados por seus nomes e por seu grupo (os Doze e as mulheres que vieram com Jesus) e há muitos outros pares. Essa estrutura tanto integra mulheres na narrativa, igualando-as aos homens, como as silencia ou retira protagonismos. Também essas duplicatas narrativas mostram que a comunidade estava dividida em grupos de mulheres e homens, para quem os pares de tipos narrativos fazem sentido, evidenciando a distância entre eles, já que apenas uma cena não podia ser exemplo para o grupo todo. O fato é que a narrativa é ambígua, enquanto algumas mulheres marginalizadas ganham proeminência e mulheres são caracterizadas positivamente, fica claro que a maioria dos papéis femininos nas cenas de curas é passivo, marcando convenções de comportamento.
No quadro 23 abaixo, reunimos as características de interesse das narrativas lucanas paralelas às analisadas no item 3.1.
Quadro 3 – Textos em Lucas e as mudanças de interesse
Texto em Lucas |
Alteração com relação a Marcos no protagonismo de mulheres e ação comunitária |
A cura da Sogra de Simão 4, 38-39 |
– Não há diferença relevante |
A comunidade definida como família 8,19-21 |
– A cena não está em uma estrutura que a conecta com a rejeição de Jesus pelos líderes religiosos como em Marcos – A fala de Jesus não inclui as mulheres como irmãs separadamente como um formato de relação comunitária, mas as mulheres ainda estão presentes entre os que o seguem. – O pertencimento comunitário, que era cumprir a vontade de Deus em Marcos, é trocado por ouvir e executar a palavra de Deus. |
A cura da filha de Jairo 8,40-42.49-56 |
– Não há diferença relevante |
A cura da mulher com hemorragia 8,43-48 |
– Não há diferença relevante |
O exorcismo da filha da sirofenícia |
– Não narrada em Lc |
A oferta da viúva pobre 21,1-4 |
– Não há mudança relevante |
A unção de Jesus 7,36-50 |
– A narrativa é bastante diferente da fonte, a começar pelo contexto, pois em Lucas a cena está durante o ministério de Jesus na Galileia. A ação dessa mulher não está conectada com a unção do rei ou sacerdote, é feita nos pés, e não fica relacionada com o sepultamento de Jesus. A mulher é atacada apenas pelo dono da casa por ser uma pecadora conhecida, o texto é sobre perdão e mudança de olhar de julgamento e pureza, enquanto a versão de Marcos trata da a unção de sepultamento de Jesus e da hipocrisia dos que ali estavam. Não há movimento de profecia e solidariedade com Jesus por parte da mulher, mas a unção é movida pelo grande amor em decorrência pelo perdão que ela obteve anteriormente. Essa mulher também não tem sua memória associada ao Evangelho |
Mulheres como testemunhas 23,48–24,12 |
– A presença das mulheres no grupo de Jesus é retomada, mas elas não estão sozinhas olhando ao longe. Estão acompanhadas de todos os conhecidos de Jesus, não figuram como únicas testemunhas. O grupo de mulheres não é definido, nenhuma mulher é nomeada nesse momento e nem no sepultamento, que é observado pelo grupo indefinido de mulheres. As mulheres vão ao sepulcro para ungir Jesus e encontram 2 anjos e, relembradas das previsões de Jesus sobre sua morte e ressurreição, foram contar o ocorrido, mas não para reuni-los a uma ida à Galileia, então são nomeadas: Maria Madalena, Joana e Maria, duas que estavam na lista de 8,1-3. Porém são desacreditadas pelos discípulos, exceto Pedro. Sua participação encerra com a passagem do exemplo de fé para Pedro que acredita e vai ao sepulcro. – A comunidade de discípulos retorna para Jerusalém e não para a Galileia. |
Fonte: Autoral
Entendendo a característica de ambiguidade e dialogismo das narrativas, é necessário observar que apesar de a versão de Lucas da maioria das histórias ser bem fiel à sua fonte, há alterações e exclusões importantes que precisam ser compreendidas como etapa da desconstrução da estratégia literária marcana.
A narrativa lucana não contém a cena da mulher sirofenícia, que apresentou, em Marcos, uma inversão narrativa, em que Jesus é entendido como quem impede o milagre e uma mulher o vence no debate. Não há uma mulher como protagonista positiva responsável pela inclusão de gentios no ministério de Jesus.
Os trechos narrativos alterados também contribuem para a diferença do protagonismo feminino. A mudança na cena da unção é substancial. Ao deslocar seu contexto e deixar de afirmar a memória dela, a ação deixa de ser profecia e solidariedade de uma discípula, cujo retorno é dado em memória, para ser devoção de amor pelo perdão recebido. A crítica aos que estão ali incomodando a mulher torna-se uma parte do ministério de ensino e fica direcionada ao dono da casa e fariseus. Em Marcos, a narrativa da paixão é emoldurada por cenas sobre unção com mulheres, com o deslocamento, Lucas abre mão dessa estrutura.
O texto lucano apresenta as mulheres como discípulas acompanhando Jesus numa etapa bem próxima ao chamamento e envio dos doze apóstolos, formando o par narrativo. Com isso, toda caracterização vacilante e de incompreensão do grupo de discípulos inclui também as mulheres, o que não é verdade em Marcos. Porém, Lucas não narra a fuga dos discípulos, portanto, não há a reviravolta que Marcos apresenta ao revelar o discipulado exemplar das mulheres na hora da morte de Jesus e colocar nelas o foco da retomada do movimento. As discípulas e discípulos estão na cena da crucificação.
O grupo de mulheres que acompanhava Jesus desde a Galileia segue o sepultamento, prepara uma unção e vai ao túmulo no terceiro dia e tem um encontro com o Jesus ressuscitado. Mas elas são desacreditadas pelos outros discípulos e assim se encerra a participação. Pedro é a pessoa de fé que vai ao túmulo e o próprio Jesus é quem rearticula o grupo dos onze com outros, antes de ascender aos céus em Betânia. Esse grupo permanece em Jerusalém, onde começa a pregação. Assim, também Lucas termina silenciando mulheres e dando foco aos onze discípulos. Ou seja, a releitura do discurso marcano não coloca as discípulas em protagonismo em relação aos demais discípulos, e retira a autoridade final delas, ocultando-as no grupo.
Ao analisar as modificações feitas por Lucas e Mateus na utilização do discurso de Marcos contido nas narrativas sobre as mulheres, percebe-se que uma construção diferente da participação de mulheres nas comunidades cristãs em cada texto. Marcos apresenta uma estratégia narrativa que trabalha sobre o crescimento gradual das possibilidades femininas e com o ocultamento da presença delas entre os discípulos, até que pudessem ter protagonismo e autoridade, e assim encerra seu texto fomentando um retorno à Galileia.
As modificações do diálogo de Lucas e Mateus sobre o discurso de Marcos correspondem às origens de suas comunidades e aos conflitos que viviam em torno do ano 85 d. C., quando compuseram seus textos, com o mundo helenístico e o judaísmo rabínico formativo. Esses conflitos exigiam um Jesus diferente do apresentado por Marcos e comportamentos diferentes dos cristãos.
Mateus assume a mesma estratégia de ocultamento das mulheres e a revelação ao final, mas diminui a força do crescimento gradual enquanto reforça a construção da personagem Jesus. No fim, e retira das mulheres o protagonismo final, passando-o aos onze apóstolos que, na Galileia, foram encarregados por Jesus a fazer discípulos. Lucas desconstrói a estratégia narrativa de Marcos com a intenção de construir pares de personagens e narrativas, embora mantenha bastante fidelidade aos textos separadamente, o que garante a maioria das possibilidades que as mulheres conquistaram nas narrativas da fonte. Com isso, coloca as mulheres em igualdade de incompreensão com os doze ao longo da história e termina o texto com foco nos discípulos como liderança firmada em Jerusalém, que é retomada em Atos dos Apóstolos.
Não se afirma aqui que as mulheres não tenham papéis positivos em ambas as narrativas, mas que esses papéis são diferentes, com menos protagonismo do que os apresentados por Marcos em sua estratégia narrativa. E isso diminui consideravelmente a força da liderança feminina nos discursos de Mateus e Lucas.
Alexandre, M., “Do anúncio do Reino à Igreja – Papéis, ministérios, poderes femininos”, en G. Duby – M. Perrot, História das mulheres no Ocidente: A Antiguidade. V.I, São Paulo 1990, 511-563.
Anderson, J. C., “The dancing daughter”, en J. C. Anderson – S. D. Moore (ed.), Mark & Method: new approaches in biblical studies, Minneapolis 22008, 111-144.
Bakhtin, M. M., Marxismo e filosofia da linguagem, São Paulo 2006.
–, The dialogic imagination, Austin 1981.
Dewey, J., “The Gospel of Mark”, en E. Schüssler Fiorenza (ed.), Searching the Scriptures 2, New York 1993, 470-509.
Fander, M., “Gospel of Mark: women as true disciples of Jesus”, en L. Schottoroff – M. T. Wacker (eds.), Feminist biblical interpretation: a compendium if critical commentary on the books of the Bible and related literature, Cambridge 2012, 626-654.
Karris, R. J., “Women and discipleship in Luke”, en A.-J. Levine, A feminist companion to Luke, Cleveland 2004, 23-43.
Love, S. L., Jesus and Marginal Women: The Gospel of Matthew in Social-Scientific Perspective, edição Kindle, Eugene 2009.
Munro, W., “Women Disciples in Mark?”, The Catholic Biblical Quarterly 44.2 (1982) 225-241.
Powell, M. A., “Literary Approaches and the Gospel of Matthew”, Methods for Matthew, New York, 2009, 44-82.
Ramos, A., “Las mujeres en el Evangelio de Lucas”, RIBLA 44.1 (2003) 71-86.
Richter R. I., Maria, Jesus e Paulo com as mulheres: textos, interpretações e história, São Paulo 2013.
–, Compaixão, cruz e esperança: teologia de Marcos, São Paulo 2012.
–, “Textos do Novo Testamento como fonte para estudos da história”, en D. M. Neto – R. C. de Souza Nascimento, A idade média: entre história e historiografia, Goiânia 2012.
–, El milagro de las manos: sanaciones y exorcismos de Jesús en su contexto histórico-cultural, Estella (Navarra) 2011.
–, Grava-me como selo sobre teu coração: teologia bíblica feminista, São Paulo 2005.
–, O Belo, as Feras e o Novo Tempo, São Leopoldo – São Paulo 2000.
Schottroff, L., “A caminho para uma reconstrução feminista da história do cristianismo primitivo”, en L. Schottroff – S. Schorer – M. T. Wacker, Exegese feminista: resultados de pesquisas bíblicas na perspectiva de mulheres, São Leopoldo–São Paulo 2008, 161-226.
Seim, T. K., “Feminist Criticism”, en M. A. Powell, Methods for Luke, New York 2010, 42-73.
Selvidge, M. J., Woman, cult and miracle recital: a redactional critical investigation on Mark 5:24-34, Crambury 1990.
Souza, C. Bezerra de, Marcos: evangelho das mulheres, Goiânia 2017.
Torjensen, K. J., “Reconstruction of Women’s Early Christian History”, en E. Schüssler Fiorenza, Searching the scriptures: a feminist introduction 1, New York 1993, 190-310.
Wainwright, E. M., Towards a feminist critical reading of the gospel according to Matthew, Berlin – New York, 1991.
–, Women healing/healing women: the genderization of healing in early Christianity, London 2006.
Weaver, D. J., “Wherever This Good News Is Proclaimed: Women and God in the Gospel of Matthew”, Interpretation: A Journal of Bible and Theology 64.4 (2010) 391-401, https://doi.org/10.1177/002096431006400406 [consulta: 30/04/2019].
[recibido: 25/10/19 – aceptado: 24/03/20]
1 Cf. Richter Reimer, O Belo, e Richter Reimer, Grava-me como selo.
2 Cf. Torjensen, “Reconstruction”, 290-291.
3 Richter Reimer, “Textos do Novo Testamento”, 235-240.
4 Cf. Schottroff, “A caminho para uma reconstrução feminista”, 142.
5 Cf. ib.,139-140; Torjensen, “Reconstruction”; Alexandre, “Do anúncio”, p. 512.
6 Cf. Richter Reimer, Maria, Jesus e Paulo, 51-52.
7 O dialogismo é esse princípio de relação com a alteridade que conduz as atividades discursivas, constitui-se das relações de sentido estabelecidas entre enunciados. Um discurso é parte integrante da discussão ideológica de larga escala em um determinado contexto. Ele responde a outros discursos, refutando ou confirmando, antecipando as respostas positivas e as possíveis objeções dentro da sua própria formação. Justamente porque o discurso é uma resposta, inclui os discursos anteriores das diversas vozes, ou seja, de muitas consciências falantes, com pontos de vista diversos, que compõem a linguagem. Seu sentido, portanto, se forma na reverberação dos significados dos outros discursos na enunciação, transmissão e recepção feita nesse diálogo. Isto implica que muitas vozes são componentes de um discurso, ou que ele é polifônico. O discurso se forma a partir da apreensão responsiva a essas vozes. Estas vozes estão expressas no discurso e polemizam suas posições sociais e ideológicas, permitindo o cruzamento e o diálogo de pontos de vista. Cf. Bakhtin, Marxismo e filosofia da linguagem, 2006.
8 Bakhtin, Marxismo e filosofia da linguagem, 147.
9 A heteroglossia está relacionada com a quantidade de linguagens diversas presentes nesse discurso. Ela se configura na utilização em um discurso (ou romance ou narrativa) de “qualquer estratificação interna de uma língua nacional, seja em dialetos sociais, comportamentos de grupo, jargão profissional, linguagem de gerações e grupos etários, linguagens tendenciosas, linguagens de autoridade, de vários círculos e de modas passageiras, linguagens que servem aos propósitos sociopolíticos do dia ou até da hora.” Cf. Bakhtin, The dialogic imagination, 262 e 263.
10 Ib., 50-65.
11 Para uma discussão sobre a questão de doença/cura/exorcismo nos evangelhos como um sistema que tem implicações sociais e políticas veja Richter Reimer, El milagro que apresenta uma visão social geral e Wainwright, Women healing/healing women, para uma análise de gênero do sistema saúde/doença/sociedade apresentado por cada Evangelho.
12 Selvidge, Woman, cult and miracle, 83-86.
13 Esta é uma opinião expressa em: Richter Reimer, Compaixão, cruz e esperança; Munro, “Women Disciples”; Dewey, “The Gospel of Mark”; Anderson “The Dancing Daughter”; Fander, “Gospel of Mark”.
14 Sobre isso confira Souza, Marcos. Em que desenvolvo um conjunto de análise histórico-crítica, da narrativa e do discurso dessas cenas para demonstrar essa estratégia narrativa;
15 Os discípulos são também apresentados em um grupo menor, de quatro, e, depois, o grupo mais restrito de três dentre a grande quantidade de pessoas que seguiam a Jesus tem a chance de estar presente em cenas relacionadas ao messianismo de Jesus. Igualmente as mulheres são apresentadas (em três ou quatro) e formam um grupo de três que são testemunhas do sinal da ressurreição.
16 O quadro reúne alguns resultados desenvolvidos na minha tese de doutoramento. Cf. Souza, Marcos: evangelho das mulheres, 2017. Os textos foram analisados a partir de tradução própria do texto grego (Nestle-Aland, 28ª edição).
17 Sobre isso ver Richter Reimer, Grava-me como selo, 110-113.
18 O quadro reúne os primeiros resultados da pesquisa de Pós-doutorado na Faculdades EST, com bolsa CAPES e financiamento FAPERGS. Os textos foram analisados a partir de tradução própria do texto grego (Nestle-Aland, 28ª edição).
19 Powell, “Literary Approaches”, 67.
20 Para uma discussão sobre o papel das mulheres no Evangelho de Mateus veja Weaver, “Wherever This Good News” para um relato da construção positiva do Evangelho de Mateus a respeito das mulheres; a crítica feminista de Wainwright, Towards a Feminist Critical, e uma perspectiva socioantropológica em Love, Jesus and Marginal Women. Sobre as cenas de crucificação, sepultamento e ressurreição ver ainda a análise narratológica de Powell, “Literary Approaches”, 74-81.
21 Há uma variante relativamente bem documentada (א A L Ψ ƒ1 33. 565. 579. 1241. 2542 pm it vgcl syh co; McionT) em que as mulheres serviam a eles, no plural, indicando serviço comunitário ou ministração. Também a tradução do termo hyparjonta pode ter o sentido de posses ou ser entendido como ‘o que dispunham’ ou ainda ‘suas forças’ ou ainda de possibilidade (com aquilo que lhes era possível) sobre isso, ver Schottroff, “A caminho”, 167. Karris, “Women and discipleship”, 28-33, também discute esses versos, ele opta pela versão em que a diaconia é feita apenas a Jesus, e entende a diaconia como um enviar em missão, ou seja que as mulheres também iam em missão no lugar de Jesus. Ele entende que o fato dessa menção às mulheres se compor um resumo também faz entender que isso continua prolongadamente, o verso 24,6 confirma que as mulheres seguiram em suas atividades até o fim.
22 Sein, “Feminist Criticism”, p.729-731 e Ramos, “Las mujeres”.
23 O quadro reúne mais resultados da pesquisa de Pós-doutorado na Faculdades EST, com bolsa CAPES e financiamento FAPERGS. Os textos foram analisados a partir de tradução própria do texto grego (Nestle-Aland, 28ª edição).